VÉU DE LETRAS
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
dona da vida
Ela chegou aos pouquinhos, a passos lentos, quase imperceptíveis.
Chegou como quem não queria nada. E como um microscópico vazamento
foi se infiltrando.
Rastreou cada átomo invadindo minúsculos canos enferrujados.
Mas não se saciou. Continuou a inescrupulosa viagem farejando anticorpos desavisados.
Atacou violentamente, embora não deixasse gota de sangue como prova.
O massacre foi contínuo, líquido, certo e do jeito que ela bem gosta: imperceptível.
A tortura prosseguiu em fatigante conta-gotas, diárias doses homeopáticas de extenuação.
A dignidade? Foi se esvaindo... pelo sangue.
Glóbulos brancos. Seringas. Veias. Exames. Diagnósticos. Prognósticos. Medo. Pavor. Histeria. E é isso que ela queria.
Chegou e se instalou como a mais ilustre dos hóspedes enquanto assistia ao mais degradante dos espetáculos humanos: Cama. Xixi na cama. Agonia. Choques. Gemidos. Gritos. Maca. Hospital. UTI.
Para seu deleite, todo o cenário mudou. Tudo mudou. Exceto seu bel prazer.
E nós, meros soldados em sentinela, conjugávamos em servidão: ele sofre, ela sofre, nós sofremos. Nossas bocas amargas e anestesiadas experimentavam a cada dia uma nova ferida e novas doses cavalares de desespero por não vermos um mísero facho de luz na escuridão.
Ela chegou aos pouquinhos sim e parecia lenta. Lenta como uma pequena onda que vai passar... mas veio como um tsunami e levou tudo com ela.
Nós que nos recusamos a olhar sua impiedosa ferocidade. Afinal somos dela, apenas dela.
Da majestosa e toda poderosa dona da vida.
Alguns ela arrasta num sopro. Fuhhh.... já foi.
Outros, dão um trabalho danado!
Meu pai foi um desses.
Mesmo diante de tantos obstáculos, fincou seus pilares de fé e não arredou os pés.
Lutou como um leão. Guerreiro até a última gota.
Te amo, pai.
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Gotas de chuva
Desde que me conheço por gente
coleciono barulhos.
Ruídos que magicamente me conduzem no
tempo e no espaço.
Assobios, campainhas, batedeira de bolo, futebol
narrado em radinhos, latidos.
Hoje deitei no sofá e me deixei levar por alguns
desses sons, até que um trovão ativou um velho e adormecido botão que me transportou para um lugarejo íntimo que há tempos
não visitava.
Barulho de chuva.
Pingos grossos lavavam os vidros do jardim de inverno de casa, jardim de minha infância. E como se banhassem largos braços de rios, águas afoitas transbordavam calhas enferrujadas e escorriam entre os cacos vermelhos que eram chão. E ao som da calmaria desaguavam felizes sobre o liso das calçadas.
Sobre outras vidraças distantes dali, dava pra escutar o assobio do vento. Gotas apressadas se cruzavam de um lado pro outro atropelando umas as outras, como pessoas atrasadas se cruzam e se atropelam nas avenidas conturbadas das grandes cidades.
Outras águas menos relapsas marchavam como soldadinhos obedientes em precisos passos e compassos, acelerando o ritmo desordenado de algumas águas distraidamente desgarradas do bando.
Relâmpagos alisavam o piche do asfalto e, como finas passarelas brancas, iluminavam o trajeto de novas águas que estavam por vir. Ah, mas havia ruídos bem mais suaves compondo a orquestra da minha imaginação.
O barulho dos parabrisas lavando os rostos de motoristas cheios de sono eram doce melodia. Em contrapartida, estrondos colossais esmagavam nossos tímpanos. Vozes de poderosos trovões que vovó dizia ser de um senhor endeusado que, num ataque de fúria, arrastava seus gigantescos móveis mudando tudo de lugar.
O mais saboroso dessa história toda era acreditar nesses sons salteados pela boca da vovó. Histórias de um cantinho secreto, só nosso, todo molhado do lado de fora e tão quentinho e seguro do lado de dentro, do lado de terços, de infindáveis nossas-senhoras e pai-nossos que rezávamos juntas. Era um som de ternura, de sossego, de aconchego. Era um som de colo. De contas de terço subindo e descendo o cordão. Um zumbido de orações que pediam por proteção. Nossa e da Terra.
Em tempos não tão modernos assim era comum as pessoas repararem na Terra e na terra, plantarem limoeiros nos jardins, colherem hortelã na horta do quintal. Com ou sem chuva. Eu mesma comia figo do pé. Logo cedo, antes do canto e bicadas dos passarinhos.
Deitada na cama, antes de dormir, ficava imaginando o som das plantas crescendo. De repente, novo estrondo ameaçava frágeis janelas de madeira. Novamente trovões se passando por deuses, donos do mundo.
O medo e a admiração de toda essa grandeza aproximavam nossas mãos, minha e da vovó. Vovó até largava seus novelos, punha o tricô de lado sobre a poltrona, e esse também ficava à espera da chuva passar para retomar a vida por entre as agulhas.
Apenas três poltronas antigas, cacos vermelhos desuniformes montando o ladrilho bem encerado, e uma renda portuguesa plantada no vaso testemunhando os sons avassaladores que trafegavam em nossos pulmões.
Quando víamos mais um relâmpago se aproximar, nossas caixas acústicas engoliam o ar secamente, e isso parecia reverberar tão alto que tínhamos receio que estilhaçassem as vidraças.
Mas tudo estava ali, apenas entre nós, ninguém ouvia nada. Nem as janelas. Éramos donas das gotas e dos assobios do vento. Eu, afagada pelos cabelos louros esbranquiçados da vovó e minha enorme vontade de que aquela chuva apertasse pra sempre. Tudo entre paredes de azulejos brancos e azuis e lâminas de vidros molhados.
Certa hora, o pescoço da vovó balançava um pouco pendendo pra frente. Era o momento em que me concentrava no percurso de uma gota, perseguindo seu caminho para ver que rumo ela tomaria, olhando-a como uma lágrima que despencou de uma nuvem, que não tem casa nem dono, mas que precisava desaguar em algum lugar. E desaguou, ainda que tarde, em uma remota lembrança, ainda que apenas para emoldurar uma coleção de barulhos.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Bolhinhas
foto: Simone Pires
Tão pequeninas e cheias de história
Lá vão elas, brotando sorrisos
Entre outras coisas que fazem levitar
Sopram segredos
E todos os medos estouram no ar
Tão pequeninas, malabaristas
Se fazem bolhinhas ainda meninas
Em caixinhas dentro do peito
E logo com muito efeito
Explodem em sentimentos
Tão pequeninas e cheias de encanto
Não há quem não corra por todo canto
Pra tentar acarinhar
Pequenos anéis de saturno
Planetas de sabão
Alegrias em órbita
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Parece que foi ontem
foto de Dani Pretto
Ela estava correndo sobre os trilhos do trem, brincando, ainda muito menina, como sempre fazia todas as tardes logo após o almoço, quando alguém desconhecido parou e lhe disse:
- um dia essa senhora virá ao seu encontro. Aquele rosto nada significou, afinal, quem era aquela velha senhora? Continuou a brincadeira com seu jeitinho travesso de moleca e seu sorriso maroto sem os dentinhos da frente que simpaticamente apelidaram de janelinhas.
A vida foi correndo sobre trilhos. A menina das janelinhas foi ganhando horizontes, encontrando homens e mulheres que jamais havia visto na vida, mas nunca se deparou com aquela marcante imagem de infância. Foi um sonho, pensou.
A menina das janelinhas amava a beleza e a cultuava como uma deusa. Em tempos narcisistas, seu corpo não entregava os números. A moldura era seu templo. A vaidade, seu santuário.
E assim, de tempos em tempos, passaram os vagões. E, dentro deles, multidões. Os olhos, ainda de menina, procuraram pela senhora, em cada um dos assentos. Mas, nada! Ela nunca aparecera.
Dias antes de sua morte alguém bateu à sua porta.
Um homem lhe entregou uma linda caixa com uma carta sobre a tampa.
Ela abriu a carta: A vida inteira você me procurou, mas saiba que eu a acompanho desde
que você nasceu. Talvez agora você já esteja preparada para me ver.
Ela destampou a caixa e tirou um espelho.
domingo, 19 de dezembro de 2010
Passos
foto de Dani Pretto
Se pensas que sigo seus passos te enganas, ah!
Vou fingir, sim, por alguns anos vou.
Deixarei imaginar que serei tua sombra e que tu és meu caminho, ah!
Porém, já conheço minhas pegadas, todas!
Desde antes de aqui aportar.
Te trarei dúvidas, angústias, algumas meias noites.
De meu paradeiro só eu sei e saberei, se me deixares.
E, se não, te enfrentareis como já enfrento a mim mesma, mesmo que duvides, porque
diante de ti devo parecer uma ainda quase ninguém.
Tu és um tolo em crer em carcaças!
Deixe estar. Te entrego minhas mãos. Vamos, leve, se iluda enquanto podes.
A ilusão te carregará adiante, te dará alguns passos diante da vida. Te dará poder.
Sigas em frente, mas não tropeces na hora da verdade. Logo ela se descortinará.
E aí quem sabe não sou eu que te guiarei ao seu encontro. Pareces tão perdido!
Venha comigo, venha! Já andei por essas pedras, não temas! Não são tão tortuosas quanto parecem.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Menina dos olhos
(essa história nasceu assim: de uma foto clicada em Sortelha, Portugal, por Dani Pretto, que mora em Lisboa. Nome da foto: Um cesto de palha trançado com pensamentos)
(ah, essa menina, vê as coisas como ela bem quer)
o sossego tecia paz
ou puro tormento?
aos olhos de quem vê
evidente, o Paraíso!
no coração de quem tece
talvez chamas
enfim,
o cesto
foi tecido
com ódio
ou amor?
em dias exaltantes
tudo possui cor
o verde mais verdejante
o cesto inteiro brilhante
foi tecido com amor
em dias nebulosos
desdém em todo episódio
não vibrante o bastante
o cesto todo medonho
foi tecido com ódio
lentes meras lentes
de aumento
ou distanciamento
de amor
ou dissabor
lentes apenas lentes
a mulher, o cesto, a palha
um tecido, uma tecelã
numa tranquila manhã pensamentos se entrelaçam em fios de palha
num dia turbulento afiadas agulhas espetam asperos fios de palha
o que diz o seu olhar
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Banho
Hoje não. Não poderia ser só um banho. Não, hoje não. Hoje tinha que ser um banho de vó. Num banheiro de vó. Com piso de vó, com cortinas de vó, banheira de vó, tapetinho de vó, espumas de vó, cheiro de vó. Não, hoje não. Hoje não poderia ser nessas casas modernas, nesses apartamentos minúsculos, nem que fossem grandes, não poderia. Hoje tinha que ser nessas casas largas, antigas, azulejadas, tudo grande, tudo espaçoso, banheira branca, canos enferrujados, banheiro a perder de vista. Vaso aqui, banheira lá longe. Hoje nenhum vidrilho pós-moderno tamparia o buraco desse caco que se estilhaçou em mim. Nenhum metal arrojado estancaria essa gota d´agua. Há um cano que se rompeu. Uma vontade imensa de mergulhar naquela fonte que ficou lá trás, bem lá trás, e que nunca mais voltará.
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