sábado, 29 de maio de 2010

Que morra!

Peguei a última palavra da minha existência e arremessei do vigésimo andar.
Depois do trigésimo papel jogado na cesta de lixo naquela madrugada à procura fatigante da maldita, uma tragédia me veio à mente.
Quando dei por mim havia cometido um ato ignorante. De um lado, heróico, de outro, bastante desprezível. Aurélio não me perdoaria. Suas vestes banhavam o mar e suas tintas encobriam os peixes com novas listras. Era um adeus ao vício de querer sempre saber sua opinião sobre minhas escritas.
Foi de grande tristeza para os pescadores apanhar folhas manchadas de contradições. Paradoxos, sinônimos e antônimos boiando em alto-mar denunciavam a ignorância de quem tentou matar a veia poética.
O que diria você de um papel vazio sem uma mísera letra sequer e mesmo assim você tivesse que ler?
Não enxerga? Tente o último andar.
Quem sabe lá do alto você consiga decifrar a palavra assassinada.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Marés

Fomos à praia, eu e ela, a princesa que me escolheu no mercado árabe para ser sua irmã.
E como era de se esperar, em frente àquela imensidão azul, mergulhamos.
Não fazíamos ideia da profundidade se não fossem as pérolas preciosas que encontrávamos
a cada afundada. Catamos várias, claro, não todas, as que pudemos enxergar com clareza em águas nunca antes navegadas. E as que não podíamos, tateávamos seus contornos,
o adorno de suas conchas.
Com toque leve e suave sentíamos a textura de um pó fininho e prateado escorrendo na palma das mãos. Pérolas antigas, que jamais viram luz. Pérolas-pó. Quantas confidências! Até o mapa de tesouros submersos elas nos confidenciaram.
Emergimos atônitas, sem fôlego, sem um átomo de oxigênio pra continuar após as escavações. Boiamos em alto-mar, ornamentadas por belas joias. Só não sabíamos se sobreviveríamos em meio a tantos naufrágios, ossos, destroços, rotas e descobertas.
Foi quando uma brisa invadiu nossas narinas a plenos pulmões.
Era ela. A vida. Querendo nadar.