segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Gotas de chuva


Desde que me conheço por gente coleciono barulhos.
Ruídos que magicamente me conduzem no tempo e no espaço.
Assobios, campainhas, batedeira de bolo, futebol narrado em radinhos, latidos.
Hoje deitei no sofá e me deixei levar por alguns desses sons, até que um trovão ativou um velho e adormecido botão que me transportou para um lugarejo íntimo que há tempos não visitava.


Barulho de chuva.
Pingos grossos lavavam os vidros do jardim de inverno de casa, jardim de minha infância. E como se banhassem largos braços de rios, águas afoitas transbordavam calhas enferrujadas e escorriam entre os cacos vermelhos que eram chão. E ao som da calmaria desaguavam felizes sobre o liso das calçadas.
Sobre outras vidraças distantes dali, dava pra escutar o assobio do vento. Gotas apressadas se cruzavam de um lado pro outro atropelando umas as outras, como pessoas atrasadas se cruzam e se atropelam nas avenidas conturbadas das grandes cidades.
Outras águas menos relapsas marchavam como soldadinhos obedientes em precisos passos e compassos, acelerando o ritmo desordenado de algumas águas distraidamente desgarradas do bando.
Relâmpagos alisavam o piche do asfalto e, como finas passarelas brancas, iluminavam o trajeto de novas águas que estavam por vir. Ah, mas havia ruídos bem mais suaves compondo a orquestra da minha imaginação.
O barulho dos parabrisas lavando os rostos de motoristas cheios de sono eram doce melodia. Em contrapartida, estrondos colossais esmagavam nossos tímpanos. Vozes de poderosos trovões que vovó dizia ser de um senhor endeusado que, num ataque de fúria, arrastava seus gigantescos móveis mudando tudo de lugar.
O mais saboroso dessa história toda era acreditar nesses sons salteados pela boca da vovó. Histórias de um cantinho secreto, só nosso, todo molhado do lado de fora e tão quentinho e seguro do lado de dentro, do lado de terços, de infindáveis nossas-senhoras e pai-nossos que rezávamos juntas. Era um som de ternura, de sossego, de aconchego. Era um som de colo. De contas de terço subindo e descendo o cordão. Um zumbido de orações que pediam por proteção. Nossa e da Terra.
Em tempos não tão modernos assim era comum as pessoas repararem na Terra e na terra, plantarem limoeiros nos jardins, colherem hortelã na horta do quintal. Com ou sem chuva. Eu mesma comia figo do pé. Logo cedo, antes do canto e bicadas dos passarinhos.
Deitada na cama, antes de dormir, ficava imaginando o som das plantas crescendo. De repente, novo estrondo ameaçava frágeis janelas de madeira. Novamente trovões se passando por deuses, donos do mundo.
O medo e a admiração de toda essa grandeza aproximavam nossas mãos, minha e da vovó. Vovó até largava seus novelos, punha o tricô de lado sobre a poltrona, e esse também ficava à espera da chuva passar para retomar a vida por entre as agulhas.
Apenas três poltronas antigas, cacos vermelhos desuniformes montando o ladrilho bem encerado, e uma renda portuguesa plantada no vaso testemunhando os sons avassaladores que trafegavam em nossos pulmões.
Quando víamos mais um relâmpago se aproximar, nossas caixas acústicas engoliam o ar secamente, e isso parecia reverberar tão alto que tínhamos receio que estilhaçassem as vidraças.
Mas tudo estava ali, apenas entre nós, ninguém ouvia nada. Nem as janelas. Éramos donas das gotas e dos assobios do vento. Eu, afagada pelos cabelos louros esbranquiçados da vovó e minha enorme vontade de que aquela chuva apertasse pra sempre. Tudo entre paredes de azulejos brancos e azuis e lâminas de vidros molhados.
Certa hora, o pescoço da vovó balançava um pouco pendendo pra frente. Era o momento em que me concentrava no percurso de uma gota, perseguindo seu caminho para ver que rumo ela tomaria, olhando-a como uma lágrima que despencou de uma nuvem, que não tem casa nem dono, mas que precisava desaguar em algum lugar. E desaguou, ainda que tarde, em uma remota lembrança, ainda que apenas para emoldurar uma coleção de barulhos.