quinta-feira, 29 de abril de 2010

Margarete e Lucas. A repetição.


Certos casais só funcionam a base de calendários.

- Como não vai?! Minha mãe está esperando a gente pra almoçar. Esqueceu que hoje é domingo?

- Não, não é isso.
- Então o que é?
- Tô meio indisposto, uma dor esquisita na lombar.
- É aquela ducha fria que você tomou depois do jogo. Aquele lugar só te faz mal. Cada vez chega com um problema...(muda o tom, fica meiga) Bem, Luquitooo, fofo, hoje não é dia pra ficar com dor na lombar e em lugar nenhum, né? Deixa essa dorzinha pra amanhã. Ela tem mais cara de segunda-feira. Ó, o telefone tocando. Tenho certeza que é a mamãe reclamando do nosso atraso. Já deve ter posto a lasanha no forno umas mil vezes, se é que eu conheço bem a dona Conchetta.
- (cuidadoso)...Cê vai ficar muito chateada se eu ficar aqui em casa hoje?
- Nem vem que não tem, Lu, você sabe muito bem que minha mãe não admite ver a gente sozinho durante o fim de semana! Ela já vai achar que estamos com problemas!
- Problema dela, oras!
- Êpa, peraí, você nunca falou desse jeito da minha mãe! Ela te trata como um filho, se ela te visse falando com esse desdém cairia dura aqui, bem na nossa frente.
Você quer matar minha mãe de desgosto?, justo você, o genro preferido dela! Você sabe disso, Lu!
-Não dá pra falar isso sem chorar, hein, Margô? Caramba, viu!, nunca posso te contrariar nem um dedinho que você já monta uma tragédia grega, saco!
- Que que eu posso fazer se eu sou sensível, ora bolas!! Cê acha que eu gosto de ser assim, de chorar a torto e a direita, acha?!
(carinhosa) Vem aqui, vem, meu plufinho peludo, vem cá no colinho da tua bezerrinha, vem. (brava) Ei, sai pra lá, larga meu peito, tá pensando que é festa do caqui?!! Ah..será que caqui com leite faz mal que nem manga com leite?
- Hum. Encosta aqui esse peitinho, Má, humm...adoro ele.
- Sai pra lá, tamo atrasado, e além disso hoje não é sábado e muito menos sexta à noite.
- E que uma coisa tem a ver com outra, Má?
- Ah, sexta à noite tem aquele romance no ar. Você chega do trabalho, não precisa acordar cedo no dia seguinte, quer relaxar...
- Então eu só posso ter tesão na sexta, é isso?
- Tem sábado também, o dia todo, quer dizer...até umas seis, né, porque depois meu irmão vem pra cá com a Rê pra gente comer pizza.
- Sei, e que eu faço se me der tesão em plena terça-feira, por exemplo?
- Guarda pra sexta.
- Essa foi punk, hein, Margô! Já viu tesão ser guardado? Ou você tá com ele ou num tá... mas guardar!
- É, mas tem um monte de gente que eu conheço que guarda. A Madá guarda, a Tatti guarda e a Dany também. Todas elas combinaram com o marido e tá dando certo.
- ahh, deve tá dando super certo sim! ...Eles devem ter uma lista de amantes.
- Cê tá me ameaçando, então?
- Num tô ameaçando ninguém, deixa de ser boba.
- (chorosa) Tá sim. Quer dizer que se eu te der só de sexta à noite e sábado e você tiver tesão na quinta não dá pra guardar. Você acabou de dizer que não vai guardar. Disse ou não disse?
- Não.
- Disse sim, não se faça de cínico.
- Eu só disse que nunca vi niguém guardar, que não é o tipo de coisa que se põe numa gaveta e guarda. Ou já fizeram guarda-tesões, tipo cômoda ou guarda-roupa?
- Eu não sou estúpida, tá.
- Ai, meu Deus, chorando de novo, Margô!! Eu não te chamei de estúpida.
- Você sabe muito bem que não existe guarda-tesão, Lu, e fica tirando um sarro da minha cara.
- Eu só quero que você pare de ficar agendando nossas vontades, mulher! Deixa rolar.
- Mas eu não fui criada assim. Lá em casa tinha dia pra tudo. Segunda e terça, só estudar. Quarta, dia de ver os padrinhos. Quinta, costureira ou médico. Sexta, não precisava comer comida, podia ser cachorro-quente. Você acredita que eu guardava a vontade de comer cachorro-quente a semana toda! É, eu via uma amiga comendo na saída do colégio - e ó que ela comia toda tarde!! - , mas eu sabia que não podia.
- Ué, mas sua mãe nem ia saber!!
- Uma vez eu tentei burlar a regra, mas não agüentei minha culpa. Eu cheguei em casa com cara de quem comeu cachorro-quente na quarta. Apanhei tanto que me acostumei a guardar pras sextas à noite.
- E agora você tá querendo trocar a salsicha pela lingüiça, é isso? Nossa, como você ficou vermelha, Má! (campainha) Merda de telefone! Vai lá que é sua mãe de novo enchendo a nossa paciência. Diz que hoje é domingo de aleluia, que a gente não vai.
- (no telefone) Perái, mãe, eu não tô te ouvindo..domingo de quê, Lu?
- A-le-lu-ia!!!
- Ouviu, mãe?
- Aleluia, aleluia, aleluia, hoje é domingo e eu vou ficar na minha casa, aleluia!!
- (disfarçando) Nada, não, mãe, ele tá gritando por causa de um programa da TV, não liga não. Não, mãe, não é não liga pra cá que eu disse!! De domingo a gente sempre se fala, né mãe?! Não liga pros gritos dele!!!... foi isso que eu disse, pombas! (desligou) Viu, só, Lú?!, minha mãe ficou chateada com você. Coitada, você estragou o domingo dela. E o meu também. Justo domingo, dia de estar feliz, sem problemas na cabeça. Vou tomar uma aspirina. (pausa) Saco, acho que deixei a cartela lá no escritório! É que às terças sempre fico com dor de cabeça depois da reunião de pauta.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Coleções

Cada um tem sua caixa de coleção. Eu tenho a minha. Outro dia resolvi dar uma espiada. Tinha tanta coisa guardada, mas tanta! E já que resolvi abrir, deitei na cama e pus tudo
de cabeça pra baixo. Achei que ia ser fácil remexer o passado, já que as coisas estavam expostas, ali, bem à minha frente. Mas não foi bem assim. Haviam peças empoeiradas, amontoadas, algumas até criando bolor. Apalpei algo. Era macio como um veludo meio acetinado. Era o laço do vestido da Teca, ahh... que saudades da boneca!... envolvia uma coleção de postais. Cada lugar que estive nesse mundo!!... nem lembrava que eram tantos! Mas lembro bem de outra coisa. Do dia do adeus pra Tequinha, minha filha de mentirinha.

A fita do vestido foi o pedacinho de pano que ficou na mão e na lembrança, contendo o rio de lágrimas. Estas, claro, não foram as primeiras, muito menos as únicas. Passei também a colecioná-las. Quedas e quedas-d´água. Em poucos dias me despediria pra sempre de um amiguinho da mesma idade, um vizinho da rua, que sentava na beira da calçada comigo jogando pedrinhas pro alto. Colecionávamos tesouros preciosos. Quando não eram pedrinhas, trocávamos latinhas com nossas brilhantes bolinhas de gude. E entre uma bolinha e outra uma confidência, um tapinha do pai, uma bronca da professora, um afago da vovó, uma conversa esquisita roubada atrás da porta. Nossa!!... uma gota pingou bem agora em cima de uma das latinhas. Olha ela lá. Está tão velha!... mal abre. Acho que enferrujou de vez. Mas cadê as bolinhas? Onde foram parar? Será que o danado do Dado pegou todas antes de partir?

Ouviu a trovoada? Lá vem chuva. De novo. Esse ano está um verdadeiro dilúvio! E eu aqui lembrando da vovó, do jardim de inverno e nossos grossos pingos de chuva batendo sem dó nas janelas de vidro. Uma de minhas coleções prediletas! Uma senhora orquestra! O som dos pingos e os zunidos da boca dela rezando o terço das seis. Colecionei nota por nota. Tom por tom. Cada um capaz de reacender minha infância como se risca um fósforo.

O tempo passando é uma espécie de coleção. Entristeço quando vejo que colecionei muito tempo perdido. Páginas e páginas que nem pra reciclar dá. E o contrário dá uma angústia danada. Muito tempo vivido, coisas boas demais, mas que passaram rápido como ventania. Páginas quase arrancadas pelo vendaval.
Antes que me arranquem as páginas que estão por vir, preenchidas com dores ou amores, calores ou tremores, quero estar certa de que irei continuar.
Sem coleções sou incapaz de respirar.