sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Bodas

Fazia trinta anos que não tínhamos uma noite como aquela.
Jantar a luz de velas, flores à mesa, champanhe francês com direito a brinde, cardápio vasto, pratos dos deuses, sobremesas de lamber os beiços (pena que fazer isso num bistrô seria uma heresia, mesmo escondidos atrás dos guardanapos).
A noite foi perfeita. Quase. Se não fosse uma dor fininha e insistente no estômago.

Pensei – logo passa, mas não passou. Deve ter sido o caviar. Aliás, só pode ter sido, todo o resto foi bom demais. Eu é que não estava mais acostumada a essas extravagâncias. Amanhã estarei novinha em folha.

Acordei com dor. Quer dizer, a dor me acordou. Às sete da manhã. E me acompanhou o resto do dia, da noite, da madrugada, até o dia seguinte.
Mal dormi. Pela dor de estômago e pela dor de dó de mim. Afinal esse mal-estar súbito e crônico estava estragando a celebração dos meus trinta anos de casamento que poderia

muito bem ter ficado registrado como “o dia” de nossas vidas. O bom é que entre reviradas nos lençóis tomei uma atitude. Mesmo sendo domingo, levantaria e iria ao médico.
E foi o que fiz.

O plantonista pediu um raio x que não acusou nada.
E assim foram os outros exames com especialistas por onde passei: endoscopia, tomografia, ressonância. E nada. Nenhum problema em nenhuma região do aparelho digestivo.

Só que a dor piorava.

Síndrome dos trinta.
Alguém não sei onde disse esse absurdo. O pior é que eu ouvi.
Pior é que ouvi mesmo!

Parece que nesse instante a dor deu uma trégua.
Mas foi só um segundo. Logo em seguida voltou.
Que ridículo!, pensei.

Pensei alto demais, porque a amiga da minha amiga lá do outro lado da mesa que comentou esse absurdo durante o café ouviu e engoliu seco.
Bem feito, quem mandou abrir o bico pra falar uma bobageira dessas!

Fui embora e a bobagem me acompanhou até em casa, até o chuveiro, até a hora de passar

o fio dental. Síndrome dos trinta! Será que esse troço existe?
A cartomante disse que sim. O astrólogo disse que não. A borra de café disse talvez.
E um bom psicólogo, o que diria, indagou minha irmã?
E eu lá estou com problemas psicológicos?
A minha dor é no estôoomago, queridinha.

Será que você não percebe a enorme distância que uma coisa tem da outra, doutora sabe tudo?

Assim que ela disse tchau eu liguei para o primeiro psicólogo da lista do convênio.

Seja lá o que Deus quiser.
Seja lá qual for o nome do sintoma, da doença ou da síndrome - se é que existe alguma, eu

quero me livrar logo dessa dor custe o que custar.

Com muito custo disse Prazer ao me apresentar.
Apesar dele insistir para eu deitar, sentei no divã bem na beiradinha e me pus a chorar de dor.
Passei quase toda sessão falando da minha dor no estômago.
O cara ficou quieto.
Faltava pouco pra terminar ele me perguntou uma coisa tão esquisita, mas tão esquisita

que o único alívio que eu senti foi não estar gastando nem um centavo do meu bolso naquela consulta, já que o convênio é que tava pagando.

Há quanto tempo a senhora e seu marido moram nesse apartamento?
Desde que casamos. Há exatos trinta anos.
Então a senhora pode me dizer qual é a cor do teto do seu quarto?
Senti uma pontada aguda no fundo do estômago. Rapidamente olhei para a porta pra ver se
a fechadura estava trancada, tamanho o meu medo.
Depois de uma pergunta sem pé nem cabeça como aquela esperava por qualquer atitude agressiva e descabida. Coloquei o pé direito à frente, bem de leve, pra ele não perceber.
Sei lá que cor... e que isso tem a ver com a minha dor?
Vocês não vivem juntos há trinta anos debaixo do mesmo teto?!
Deus do Céu! Mais uma pontada... fiz de tudo pra disfarçar. Não podia me mostrar fragilizada diante daquele doido de pedra.
As paredes, disse ele.
O que tem as paredes?, perguntei.
Que estado se encontram?
Olha, doutor, não me leve a mal, mas...
Conservadas ou caindo aos pedaços?
Segurei o máximo que pude, mas minhas mãos tremiam e escorriam de suor.
Doutor...é que não sou muito observadora nem boa fisionomista...e além do mais, nossa hora já não está terminando...

A intimidade de um casal não acontece entre quatro paredes?!

Ao ouvir mais essa do maníaco disparei como uma rajada de metralhadora, derrubando cadeira, mesinha e tudo que estava pela frente. Da mesma maneira entrei no meu quarto, como um furacão avassalador.
Me joguei no chão e olhei pra cima. O ventilador de teto atrapalhava a visão.
Enlouquecida peguei o criado-mudo e pus em cima da cama.
Não sei como me equilibrei, mas consegui arrancar o troço todo de uma só vez.
Pulei do criado e me estirei novamente no chão.
Havia rachaduras. Várias. Diversas, aliás.
Nos cantos, não faltavam teias de aranha. Muitas.
As paredes. Agora eram elas.
Me ergui em posição de sentinela para examinar uma por uma.

Os quadros. Eram eles os obstáculos. Foram todos ao chão. Com pregos e tudo.
Pronto: paredes nuas e cruas.
Diagnóstico: Crostas de pó. Sinais de infiltração. Mofos. Até buracos.

Minhas pernas foram amolecendo, os joelhos dobrando, e a dor, a terrível e inexplicável dor, foi do estômago ao coração em frações de segundos, arremessando lembranças e sentimentos massacrados pelo tempo. Trinta anos entre quatro paredes vivendo juntos debaixo do mesmo teto e deixando tanta coisa apodrecer!

Passada a avalanche de lágrimas, a dor se foi. Leve e ligeira como uma pluma. E eu convidei meu marido para celebrarmos de novo nossas bodas.
Não num bistrô. Mas numa casa de tintas.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Apenas noite

Se apenas houvesse noite, não haveria medo.
Talvez eu fizesse tudo o que me desse na telha.
Talvez a coragem vencesse.
À noite, ao contrário, tudo é claro. É possível. Tudo é fácil e mágico.
À noite, acordada, eu sonho. E me deixo levar pelos meus desejos.
À noite eu me encorajo.
Fecho os olhos apenas para enfeitar o cenário das minhas conquistas. Pois é claro!, já conto como certas.
Gosto do gosto da noite, desse seu feitiço, sua doce zonzeira, seu silêncio surdo que liberta minhas vozes caladas.
Quantas noites já lutei pra não dormir só pra poder sonhar?
Quantas pílulas já não tomei pra ficar acordada?
Mas o sono, esse destruidor da misericordiosa insônia, vem e rouba a dona da minha onipotência e se faz senhor dos meus pesadelos.
Porém, me mantenho a quilômetros do alvorecer.

Me recuso por um pé sequer madrugada adentro.
Tenho náuseas quando a lua se põe.
Vou morrendo ao nascer do sol....ao começar de novo.
Começar o quê?
O real?
Apagar o brilho?
Aprisionar o sonho?
Desligar o possível?
Ativar os medos?
Armar os entraves?
Dizer adeus aos delírios ilimitáveis da noite?
Não. Sou apenas de uma dona só. Ela, a escuridão.
Somente nela sou capaz de me ver.
Quanto mais negra, mais reflito.
Eu e ela, numa eterna cumplicidade.
Intimidade invejável.
A noite, meu fiel retrato.
Minha alma revelação.