sexta-feira, 31 de julho de 2009

Livro de receitas

Dizem que a vida só tem graça quando a gente encontra um sentido para viver. Eu encontrei alguns. Fazer nada. Descobrir tudo. Dançar, viajar, amar, cozinhar, meditar, namorar, sonhar, conquistar, rezar. Uns, com sabores meio amargos....fazer o quê? Outros, mais açucarados. Mas no meu livro de receitas da vida sempre procuro realçar os agridoces.
Misturar todos esses ingredientes nas páginas de uma única história tem resultado num sabor inigualável. E traduzir essa grande viagem em palavras tem sido como acrescentar a pitada de sal que faltava e o punhado de especiarias aromáticas essenciais para finalizar o banquete com aquele toque mágico de quem faz questão de degustar a vida como um gourmet.

sábado, 25 de julho de 2009

O ciclo da vida

Óvulo,
Ótimo!
Ofício,
Óculos,
Óbvio!
Ócio,
Óbito,
Ossos.

Mãe

Não comecei a escrever para ganhar a vida. Mas para me salvar dela.
Uma morte abrupta me colocou a caneta entre os dedos trêmulos e apavorados, carregados de tintas vermelhas que se espalhavam pelas linhas do caderno espiral.
Lágrimas contidas se transformavam em letras desaguadas. A caneta deslizava veloz, acompanhando meus batimentos cardíacos. Meus pensamentos ficavam para trás. E quando a autora cansada, a caneta, parava para repor a carga era o momento que eu entrava em cena para saber o que havia escrito. Lia tudo exatamente como um leitor lê um texto pela primeira vez.
Três pequeninas letras e um til abandonavam o meu roteiro de vida naquela trágica e obscura madrugada. Porém, seria o sumiço dessas minúsculas letrinhas, que juntas compõem a mais sublime palavra do universo, que fizeram brotar a semente de tantas outras que vieram e ainda estão por vir?
Dou minha palavra….até hoje tenho interrogações.

Filho

Filho

Um dia eu vou partir

E você vai ficar

Vai ficar com meus tesouros

e minhas pérolas

Vai ficar com a minha vontade

de mudar o mundo

de fazer o Ser se amar

mais do que ser amado

Vai ficar com as minhas ideias

que jamais conseguiram vitrine para brilhar

Vai ficar com o meu olhar sobre a linha do horizonte

sempre querendo enxergar além-mar

Vai ficar com minha inquietude por

não me conformar em viver apenas uma vida e

não vidas paralelas sem saber como,

além de brasileira, branca e mãe seria

ter sido africana, negra, enfermeira de

um campo de refugiados, ou japonesa, amarela e gueixa.

Filho

Você vai ficar com tudo

Vai ficar com um amor que o mundo jamais viu

e, o que é pior,

Vai ficar com meu medo de amar tanto, meu medo de ir

e te deixar, e todo pavor que tenho que você me deixe antes de eu partir.

Filho

Antes de minha despedida quero que você saiba

que toda a minha história se completa com a sua chegada

que nada antes vivi diante da vida do que você me trouxe.

Filho

Quero que fique com os meus carinhos

minhas broncas e conselhos

Mas fique, principalmente, com meu sorriso largo

e meus olhos reluzentes de todas as vezes que olhei pra você.

Esposa, que falta ela faz

Ele nem precisou parar pra pensar na falta que ela fazia. Afinal, quarenta e dois anos vivendo debaixo do mesmo teto não se esquece num piscar de olhos. O lado direito da cama parecia tão frio, mas o que incomodava mesmo eram os seus chinelos fora do lugar.

Como ele se sentia seguro ao admirar todas as noites aquele par bem ajeitado no assoalho do lado esquerdo da cama, perto do abajur que ela sempre ligava pra ele ler antes de adormecer.

O travesseiro...ah..como ela sabia mensurar a altura exata do travesseiro (nem pra cima demais, nem pra baixo demais) para o repouso de seu pescoço sempre tão tenso após a leitura dos jornais na poltrona reclinada na sala de estar enquanto ela terminava de secar e guardar a louça. Ele recostava a cabeça como se estivesse deitando sobre as mãos de uma massagista atenta e delicada. E ler seu livro de cabeceira ou suas orações de santinhos era algo que, preparado com todo aquele carinho, o fazia levitar sobre os lençóis limpos, esticados e com cheirinho de flores do campo. Até o aroma do amaciante de roupas ela sabia qual mais lhe agradava.

Cada pequeno canto da casa, cada carta empilhada por ordem de chegada sobre a escrivaninha, cada toalha recolhida úmida da cama, cada pãozinho quente no café da manhã deixado bem ao lado de sua caneca preferida, cada paletó sem um único pelo branco pendurado sobre a cadeira próxima da porta social, cada cueca e cada meia recolhida do chão do banheiro... eram tantos os detalhes, tantos pequenos gestos de amor, que era impossível não sentir sua falta. Mesmo assim, ele se casou rápido para enorme espanto de parentes, filhos e do vizinho de portão. Até as noras ficaram pasmas tamanho o amor que ele declarava pela falecida mulher. A forma como tudo se sucedeu lhes soou como traição. Tomando conhecimento de todos os comentários, - os assumidos em alto e bom som e os tecidos por linhas mal costuradas -, ele indagou aos seus próprios botões quem afinal faria com tamanho zelo e devoção tudo aquilo que a mulher fizera por ele anos e anos a fio.

Pensando bem, ele estava certo, concluiu. Fez bem de casar com a empregada.