sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Parece que foi ontem



foto de Dani Pretto

















Ela estava correndo sobre os trilhos do trem, brincando, ainda muito menina, como sempre fazia todas as tardes logo após o almoço, quando alguém desconhecido parou e lhe disse:
- um dia essa senhora virá ao seu encontro. Aquele rosto nada significou, afinal, quem era aquela velha senhora? Continuou a brincadeira com seu jeitinho travesso de moleca e seu sorriso maroto sem os dentinhos da frente que simpaticamente apelidaram de janelinhas.
A vida foi correndo sobre trilhos. A menina das janelinhas foi ganhando horizontes, encontrando homens e mulheres que jamais havia visto na vida, mas nunca se deparou com aquela marcante imagem de infância. Foi um sonho, pensou.
A menina das janelinhas amava a beleza e a cultuava como uma deusa. Em tempos narcisistas, seu corpo não entregava os números. A moldura era seu templo. A vaidade, seu santuário.

E assim, de tempos em tempos, passaram os vagões. E, dentro deles, multidões. Os olhos, ainda de menina, procuraram pela senhora, em cada um dos assentos. Mas, nada! Ela nunca aparecera.
Dias antes de sua morte alguém bateu à sua porta.
Um homem lhe entregou uma linda caixa com uma carta sobre a tampa.
Ela abriu a carta: A vida inteira você me procurou, mas saiba que eu a acompanho desde

que você nasceu. Talvez agora você já esteja preparada para me ver.
Ela destampou a caixa e tirou um espelho.


domingo, 19 de dezembro de 2010

Passos



foto de Dani Pretto











Se pensas que sigo seus passos te enganas, ah!
Vou fingir, sim, por alguns anos vou.
Deixarei imaginar que serei tua sombra e que tu és meu caminho, ah!
Porém, já conheço minhas pegadas, todas!
Desde antes de aqui aportar.
Te trarei dúvidas, angústias, algumas meias noites.
De meu paradeiro só eu sei e saberei, se me deixares.
E, se não, te enfrentareis como já enfrento a mim mesma, mesmo que duvides, porque

diante de ti devo parecer uma ainda quase ninguém.
Tu és um tolo em crer em carcaças!

Deixe estar. Te entrego minhas mãos. Vamos, leve, se iluda enquanto podes.
A ilusão te carregará adiante, te dará alguns passos diante da vida. Te dará poder.
Sigas em frente, mas não tropeces na hora da verdade. Logo ela se descortinará.
E aí quem sabe não sou eu que te guiarei ao seu encontro. Pareces tão perdido!

Venha comigo, venha! Já andei por essas pedras, não temas! Não são tão tortuosas quanto parecem.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Menina dos olhos



(essa história nasceu assim: de uma foto clicada em Sortelha, Portugal, por Dani Pretto, que mora em Lisboa. Nome da foto: Um cesto de palha trançado com pensamentos)











(ah, essa menina, vê as coisas como ela bem quer)

o sossego tecia paz
ou puro tormento?
aos olhos de quem vê
evidente, o Paraíso!
no coração de quem tece
talvez chamas

enfim,
o cesto
foi tecido
com ódio
ou amor?

em dias exaltantes
tudo possui cor
o verde mais verdejante
o cesto inteiro brilhante
foi tecido com amor

em dias nebulosos
desdém em todo episódio
não vibrante o bastante
o cesto todo medonho
foi tecido com ódio

lentes meras lentes
de aumento
ou distanciamento
de amor
ou dissabor
lentes apenas lentes

a mulher, o cesto, a palha
um tecido, uma tecelã
numa tranquila manhã pensamentos se entrelaçam em fios de palha
num dia turbulento afiadas agulhas espetam asperos fios de palha
o que diz o seu olhar

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Banho

Hoje não. Não poderia ser só um banho. Não, hoje não. Hoje tinha que ser um banho de vó. Num banheiro de vó. Com piso de vó, com cortinas de vó, banheira de vó, tapetinho de vó, espumas de vó, cheiro de vó. Não, hoje não. Hoje não poderia ser nessas casas modernas, nesses apartamentos minúsculos, nem que fossem grandes, não poderia. Hoje tinha que ser nessas casas largas, antigas, azulejadas, tudo grande, tudo espaçoso, banheira branca, canos enferrujados, banheiro a perder de vista. Vaso aqui, banheira lá longe. Hoje nenhum vidrilho pós-moderno tamparia o buraco desse caco que se estilhaçou em mim. Nenhum metal arrojado estancaria essa gota d´agua. Há um cano que se rompeu. Uma vontade imensa de mergulhar naquela fonte que ficou lá trás, bem lá trás, e que nunca mais voltará.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Meditar

Presenças. Apenas e tão somente. Aromas. Cheiro do mato. Cheiro da chuva. Bolinhos de chuva. Céu de chuva. Barulho de chuva. Gotas de suor. Ruídos. Lenha. Serrador de lenha. Fogão a lenha. Cebolas picadas recém colhidas da horta. Cenouras ainda com terra. Pão. Cestas de pão. Casquinhas de pão. Grilos. Crianças. Choro de criança. Chorinho. Sapo. Sensações. Ossos. Bunda. Frio. Quente. Macio. Duro. Pés. Formigas. Formigas nos pés. Formigamento. Peito. Aperto. Nó. Soltura. Espaço. Ar. Amplidão. Domínio da mente. Domínio do pensamento. Sim. Não. Não quero. Quero. Flagrante. Agora não. Domínio do tempo. Ontem foi. Passou. Amanhã mora longe. Aqui. Agora. Possibilidade única. Tangível. Contemplação plenamente possível.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O voo



(essa história nasceu assim: Dani Pretto - mora em Lisboa e fez essa linda foto -
todos os dias admirava essa senhora feliz em sua janela; até que um dia passou e viu
a mesma fechada com placa de vende-se)

















Que estranho, vejam só.
A janela da Lapa bateu asas e voou.
Bem me intrigavam aquelas ventas escancaradas
da manhã ao entardecer.

Mas que outras molduras ornamentariam tão bem
os doces cabelos de algodão daquela bela senhora?
E existiriam plateias mais dignas, fieis e distintas
Que aqueles senhorzinhos trajados com pequenos smokings?
Todos os dias estavam lá, diante da bela senhora, diante da bela janela.
Eles, falando com ela. Ela, assobiando para eles.

Um dia, belo, como todos os outros,
Receberam visita.
O tempo chegou para um, assim como chega para todos os outros.
A janela se foi.
Mas as longas e felizes conversas da senhora com os pombos
Continuam lá.
Ainda dá para ouvir.

sábado, 9 de outubro de 2010

Peeling

Fiz peeling
I’m getting older
Sou capaz de tudo
Ou melhor,
Plásticas não
To do or not to do?
Eis a questão.
Mas me render às escavações cosméticas, sou capaz
Sim, sou
Why not?
I told you
Fiz peeling
Mas, uma coisa é fato
Concreto,
Preto no branco
Me rendo
À cosméstica que de fato devolva o encanto dos trinta,
Mas jamais encubra o brilho dos quarenta.

domingo, 5 de setembro de 2010

Um presente de mãe

Filho, como você cresce rápido, mal consigo te dar um presente por dia.
Gostaria de te dar uma árvore. Aquela que a gente vê do carro no caminho pra casa da titia. Você fica olhando tanto pra ela. Queria ver você subindo nela ou a gente entrelaçando uma corda pra você balançar, balançar.
Queria te dar flores também. Parar naquelas casas com lindos jardins na volta da escola e

te dar o nome de cada uma delas, girassóis, margaridas e minhas preferidas, primaveras.
Queria te dar pássaros, deitar com você na grama e contar quantos estão voando naquele momento. Queria te dar uma coleção de nuvens com cara de bichos e monstros. Fazia tanto isso quando era criança.
Queria te dar o vento no rosto, risadas à toa, te dar horas e horas sem olhar a cada minuto

no relógio. Ah... gostaria de te dar longas conversas sem atender o celular.
Sabe, filho, queria te dar uma escola onde você tivesse mais prazeres do que deveres. Mais desafios do que lições. Onde você pudesse simplesmente brincar, se pintar, se sujar e

se descobrir sem eu te pressionar se um dia você vai entrar na faculdade.
Me perdoe, filho, só tenho te dado futuro, não é mesmo?
Mas juro, daqui pra frente prometo te dar mais presentes.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Rizoma

Olhando de fora se vê apenas aquilo. Nada mais que uma mesa, uma janela e uma árvore atrás da janela. Claro, não dá pra simplificar tanto assim. Convenhamos que se trata de uma composição nada habitual para uma sala de escritório, no mínimo um visual arborizado no meio de uma selva de pedra. Uma paisagem um tanto privilegiada.
Quem é que não gostaria de ter para si o seguinte panorama: todos os dias acordar, tomar café, pegar o carro e enfrentar o trânsito sabendo que uma árvore a espera para iniciar o cronograma?
Pois bem, essa é a pintura estática. Aquela árvore não está ali por mero acaso. Os peritos em nanotecnologia já desvendaram tudo. De suas folhas são extraídos insumos que semeiam terrenos inférteis, mal-plantados, em florestas distantes. Descobriram também que é na calada da noite que os planos florescem. E ao abrir a janela para o frescor da manhã penetrar sala adentro, os extratos se espalham através dos polens que se espalham sobre a mesa dela.

Suas narinas aspiram o límpido ar ligeiramente, e as ramificações internas de seu nariz arejam seu cérebro em questão de segundos, germinando, germinando ideias sem cessar. Eis que surgem entroncamentos, mix de culturas, experimentações, preparação de solos, adubagem, zilhões de insights frescos jorrando como água da nascente, forças sobrenaturais que movem montanhas, alastrando caules e raízes mundo afora.
Como no outono, ali também ocorre troca de folhas. Aos poucos as secas vão dando vazão ao vazio, e o vazio, aos brotos. A interatividade é total.
Viu só? Nada de árvore plantada sem fazer nada só enfeitando a paisagem. A pintura é dinâmica.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A verdadeira Disneyworld

Dessa vez não tivemos que acessar nenhum paraíso-ilhado e nem comprar ingressos pra nos divertir. A diversão estava nas ruas, a cada quarteirão, a qualquer momento no meio das cidades, pra todas as crianças, de zero a noventa anos.

Não havia grades, cercas elétricas, arames farpados, guaritas nem vidros blindados. Não havia condomínios fechados com clubes para alguns privilegiados.

Havia sim mães entrando com carrinhos de bebês pra dentro dos ônibus com degraus que descem ao nível da calçada. Pracinhas arborizadas lotadas de imensos canos coloridos que jorravam águas divertidas em cima das crianças e seus papais. Ou chafarizes secretos, prontos pra molhá-las ao inverso, do chão pro alto.

Os pais que não estavam no meio da molhadeira assistiam tudo sentados
em confortáveis bancos de madeira armando o piquenique. Não, lá ninguém é farofeiro por fazer piqueniques, muito menos pobre.

Fim da brincadeira, hora de ler, que tal uma paradinha numa enorme biblioteca em que a ala infantil tem bichinhos de pelúcia em cima das estantes dos livros? A história já começa a ficar ainda mais divertida, afinal, ler diariamente não é nenhum bicho do outro mundo.

O dia todo nas ruas sem nem olhar na hora de atravessar. E o mais divertido ainda fica na hora de voltar pra casa. Como vamos? de Sky-trem? de metrô, de ônibus que carregam bicicletas na dianteira? de ônibus movidos a eletricidade? Ou vamos de bike, já que há mais de seis mil bikes em quatrocentos pontos espalhados pela cidade? Não, não. Vai ser mais engraçado ir de charrete vendo o cavalo fazer coco nos fraldões de couro pra não sujar a rua.

Ai que sede, também, puxa!! E a fome já bateu. – Mamãe, por que o garçon trouxe água sem a gente pedir? Aqui água é de graça?!

Não, hoje andamos muito, e agora com o estômago cheio é melhor ir de ônibus mesmo. Chega aqui no ponto, vamos olhar a planilha: olha só, o itinerário do ônibus 108 passa perto do nosso hotel, e chega daqui há dois minutinhos, às oito e quarenta e dois. – Não, ele chegou antes do horário e tá ali desligado esperando os passageiros. Ahh.. mas eu queria ver de novo aqueles esquilinhos no parque! - Boa tarde, tudo bem? - Responde, filho, o morotorista perguntou se você está bem, responde. – Você conhece ele, mamãe?!

Peraí, peraí, não entra no ônibus, não. Olhe só pra baixo daquele viaduto: vai começar o espetáculo do Cirque Du Soleil, e é de graça!

- Puxa, mamãe, por que não inventam mais parques de diversão no meio das ruas como esses lá onde a gente mora?


Educação gratuita, só que não é em nenhuma escola.

Um mundo de perguntas, uma enciclopédia.
Marcelo perguntou muito. De tudo.
Por que as pessoas paravam pra nos ajudar, a dar informações. Por que os carros paravam pras pessoas atravessarem mesmo fora da faixa de pedestres. Por que as crianças viviam tão soltas, sem amarrem suas mãos as mãos temerosas de seus pais. Por que as crianças podiam andar de bicicleta nas ruas. Por que tinha piscinas aquecidas públicas e limpas. Por que todo mundo fazia fila na mesma largura da faixa de pedestres até chegar sua vez de atravessar. Por que estavam construindo pontes nas estradas só para ursos, alces, bodes, esquilos atravessarem pro outro lado.

Esse paraíso a céu aberto já tem outro nome, mas Liberdade seria perfeito.
Canadá. É só um país, mas poderia ser o mundo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A flor e o jardineiro

Apesar de alguns espinhos, não deixava de ser flor. Apesar de despetalada, também não. Flor era flor e só queria um lindo jardim para crescer. Um lindo jardim e algo mais precioso: descobrir qual flor ela era afinal. Flor vivia pelos cantos, murcha e desidratada. Flor sobrevivia isso sim, ora num espaço mirrado, num pedaço de terreno arenoso quase sem vegetação, ora num vasinho qualquer cujo dono nem aparecia pra regar. Sem terra, sem água, sem identidade, flor vivia em desamor.
Mas como nem tudo na vida são só rosas, flor foi colhida e acolhida. Mãos experientes de um sábio jardineiro reconheceram em flor a dor. Férteis mãos cuidavam de flor como ninguém,

e ajudavam flor a resgatar seu amor. Não, não era nenhum amor-perfeito. Mas dava flor.
Foi então que o jardineiro preparou o terreno com o mais nobre dos adubos e a mais fresca das águas. E replantou flor. Eram dias luminosos aqueles em que as sábias mãos a cultivavam com tanta delicadeza. Flor se derramava em pétalas tamanha emoção. No começo só sabia reconhecer qual flor ela não era, e já era o bastante. Se sentia viva naquele vasto jardim.
As raízes de flor começaram a fincar na terra. Flor foi florescendo e desabrochando tanto que um belo dia surgiu um lindo beija-flor. Ela quis voar como ele, e voou. Juntos fizeram um lindo ninho florido. Flor agora tem cor. Do alto de seu jardim particular, lá no topo da árvore, flor observa o jardineiro e suas abençoadas mãos. Flor já sabe que flor ela é, ele também. Mas isso é o que menos importa. O que importa é que flor não fica mais plantada esperando a primavera chegar. Flor dá flor em qualquer estação do ano.

sábado, 29 de maio de 2010

Que morra!

Peguei a última palavra da minha existência e arremessei do vigésimo andar.
Depois do trigésimo papel jogado na cesta de lixo naquela madrugada à procura fatigante da maldita, uma tragédia me veio à mente.
Quando dei por mim havia cometido um ato ignorante. De um lado, heróico, de outro, bastante desprezível. Aurélio não me perdoaria. Suas vestes banhavam o mar e suas tintas encobriam os peixes com novas listras. Era um adeus ao vício de querer sempre saber sua opinião sobre minhas escritas.
Foi de grande tristeza para os pescadores apanhar folhas manchadas de contradições. Paradoxos, sinônimos e antônimos boiando em alto-mar denunciavam a ignorância de quem tentou matar a veia poética.
O que diria você de um papel vazio sem uma mísera letra sequer e mesmo assim você tivesse que ler?
Não enxerga? Tente o último andar.
Quem sabe lá do alto você consiga decifrar a palavra assassinada.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Marés

Fomos à praia, eu e ela, a princesa que me escolheu no mercado árabe para ser sua irmã.
E como era de se esperar, em frente àquela imensidão azul, mergulhamos.
Não fazíamos ideia da profundidade se não fossem as pérolas preciosas que encontrávamos
a cada afundada. Catamos várias, claro, não todas, as que pudemos enxergar com clareza em águas nunca antes navegadas. E as que não podíamos, tateávamos seus contornos,
o adorno de suas conchas.
Com toque leve e suave sentíamos a textura de um pó fininho e prateado escorrendo na palma das mãos. Pérolas antigas, que jamais viram luz. Pérolas-pó. Quantas confidências! Até o mapa de tesouros submersos elas nos confidenciaram.
Emergimos atônitas, sem fôlego, sem um átomo de oxigênio pra continuar após as escavações. Boiamos em alto-mar, ornamentadas por belas joias. Só não sabíamos se sobreviveríamos em meio a tantos naufrágios, ossos, destroços, rotas e descobertas.
Foi quando uma brisa invadiu nossas narinas a plenos pulmões.
Era ela. A vida. Querendo nadar.









quinta-feira, 29 de abril de 2010

Margarete e Lucas. A repetição.


Certos casais só funcionam a base de calendários.

- Como não vai?! Minha mãe está esperando a gente pra almoçar. Esqueceu que hoje é domingo?

- Não, não é isso.
- Então o que é?
- Tô meio indisposto, uma dor esquisita na lombar.
- É aquela ducha fria que você tomou depois do jogo. Aquele lugar só te faz mal. Cada vez chega com um problema...(muda o tom, fica meiga) Bem, Luquitooo, fofo, hoje não é dia pra ficar com dor na lombar e em lugar nenhum, né? Deixa essa dorzinha pra amanhã. Ela tem mais cara de segunda-feira. Ó, o telefone tocando. Tenho certeza que é a mamãe reclamando do nosso atraso. Já deve ter posto a lasanha no forno umas mil vezes, se é que eu conheço bem a dona Conchetta.
- (cuidadoso)...Cê vai ficar muito chateada se eu ficar aqui em casa hoje?
- Nem vem que não tem, Lu, você sabe muito bem que minha mãe não admite ver a gente sozinho durante o fim de semana! Ela já vai achar que estamos com problemas!
- Problema dela, oras!
- Êpa, peraí, você nunca falou desse jeito da minha mãe! Ela te trata como um filho, se ela te visse falando com esse desdém cairia dura aqui, bem na nossa frente.
Você quer matar minha mãe de desgosto?, justo você, o genro preferido dela! Você sabe disso, Lu!
-Não dá pra falar isso sem chorar, hein, Margô? Caramba, viu!, nunca posso te contrariar nem um dedinho que você já monta uma tragédia grega, saco!
- Que que eu posso fazer se eu sou sensível, ora bolas!! Cê acha que eu gosto de ser assim, de chorar a torto e a direita, acha?!
(carinhosa) Vem aqui, vem, meu plufinho peludo, vem cá no colinho da tua bezerrinha, vem. (brava) Ei, sai pra lá, larga meu peito, tá pensando que é festa do caqui?!! Ah..será que caqui com leite faz mal que nem manga com leite?
- Hum. Encosta aqui esse peitinho, Má, humm...adoro ele.
- Sai pra lá, tamo atrasado, e além disso hoje não é sábado e muito menos sexta à noite.
- E que uma coisa tem a ver com outra, Má?
- Ah, sexta à noite tem aquele romance no ar. Você chega do trabalho, não precisa acordar cedo no dia seguinte, quer relaxar...
- Então eu só posso ter tesão na sexta, é isso?
- Tem sábado também, o dia todo, quer dizer...até umas seis, né, porque depois meu irmão vem pra cá com a Rê pra gente comer pizza.
- Sei, e que eu faço se me der tesão em plena terça-feira, por exemplo?
- Guarda pra sexta.
- Essa foi punk, hein, Margô! Já viu tesão ser guardado? Ou você tá com ele ou num tá... mas guardar!
- É, mas tem um monte de gente que eu conheço que guarda. A Madá guarda, a Tatti guarda e a Dany também. Todas elas combinaram com o marido e tá dando certo.
- ahh, deve tá dando super certo sim! ...Eles devem ter uma lista de amantes.
- Cê tá me ameaçando, então?
- Num tô ameaçando ninguém, deixa de ser boba.
- (chorosa) Tá sim. Quer dizer que se eu te der só de sexta à noite e sábado e você tiver tesão na quinta não dá pra guardar. Você acabou de dizer que não vai guardar. Disse ou não disse?
- Não.
- Disse sim, não se faça de cínico.
- Eu só disse que nunca vi niguém guardar, que não é o tipo de coisa que se põe numa gaveta e guarda. Ou já fizeram guarda-tesões, tipo cômoda ou guarda-roupa?
- Eu não sou estúpida, tá.
- Ai, meu Deus, chorando de novo, Margô!! Eu não te chamei de estúpida.
- Você sabe muito bem que não existe guarda-tesão, Lu, e fica tirando um sarro da minha cara.
- Eu só quero que você pare de ficar agendando nossas vontades, mulher! Deixa rolar.
- Mas eu não fui criada assim. Lá em casa tinha dia pra tudo. Segunda e terça, só estudar. Quarta, dia de ver os padrinhos. Quinta, costureira ou médico. Sexta, não precisava comer comida, podia ser cachorro-quente. Você acredita que eu guardava a vontade de comer cachorro-quente a semana toda! É, eu via uma amiga comendo na saída do colégio - e ó que ela comia toda tarde!! - , mas eu sabia que não podia.
- Ué, mas sua mãe nem ia saber!!
- Uma vez eu tentei burlar a regra, mas não agüentei minha culpa. Eu cheguei em casa com cara de quem comeu cachorro-quente na quarta. Apanhei tanto que me acostumei a guardar pras sextas à noite.
- E agora você tá querendo trocar a salsicha pela lingüiça, é isso? Nossa, como você ficou vermelha, Má! (campainha) Merda de telefone! Vai lá que é sua mãe de novo enchendo a nossa paciência. Diz que hoje é domingo de aleluia, que a gente não vai.
- (no telefone) Perái, mãe, eu não tô te ouvindo..domingo de quê, Lu?
- A-le-lu-ia!!!
- Ouviu, mãe?
- Aleluia, aleluia, aleluia, hoje é domingo e eu vou ficar na minha casa, aleluia!!
- (disfarçando) Nada, não, mãe, ele tá gritando por causa de um programa da TV, não liga não. Não, mãe, não é não liga pra cá que eu disse!! De domingo a gente sempre se fala, né mãe?! Não liga pros gritos dele!!!... foi isso que eu disse, pombas! (desligou) Viu, só, Lú?!, minha mãe ficou chateada com você. Coitada, você estragou o domingo dela. E o meu também. Justo domingo, dia de estar feliz, sem problemas na cabeça. Vou tomar uma aspirina. (pausa) Saco, acho que deixei a cartela lá no escritório! É que às terças sempre fico com dor de cabeça depois da reunião de pauta.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Coleções

Cada um tem sua caixa de coleção. Eu tenho a minha. Outro dia resolvi dar uma espiada. Tinha tanta coisa guardada, mas tanta! E já que resolvi abrir, deitei na cama e pus tudo
de cabeça pra baixo. Achei que ia ser fácil remexer o passado, já que as coisas estavam expostas, ali, bem à minha frente. Mas não foi bem assim. Haviam peças empoeiradas, amontoadas, algumas até criando bolor. Apalpei algo. Era macio como um veludo meio acetinado. Era o laço do vestido da Teca, ahh... que saudades da boneca!... envolvia uma coleção de postais. Cada lugar que estive nesse mundo!!... nem lembrava que eram tantos! Mas lembro bem de outra coisa. Do dia do adeus pra Tequinha, minha filha de mentirinha.

A fita do vestido foi o pedacinho de pano que ficou na mão e na lembrança, contendo o rio de lágrimas. Estas, claro, não foram as primeiras, muito menos as únicas. Passei também a colecioná-las. Quedas e quedas-d´água. Em poucos dias me despediria pra sempre de um amiguinho da mesma idade, um vizinho da rua, que sentava na beira da calçada comigo jogando pedrinhas pro alto. Colecionávamos tesouros preciosos. Quando não eram pedrinhas, trocávamos latinhas com nossas brilhantes bolinhas de gude. E entre uma bolinha e outra uma confidência, um tapinha do pai, uma bronca da professora, um afago da vovó, uma conversa esquisita roubada atrás da porta. Nossa!!... uma gota pingou bem agora em cima de uma das latinhas. Olha ela lá. Está tão velha!... mal abre. Acho que enferrujou de vez. Mas cadê as bolinhas? Onde foram parar? Será que o danado do Dado pegou todas antes de partir?

Ouviu a trovoada? Lá vem chuva. De novo. Esse ano está um verdadeiro dilúvio! E eu aqui lembrando da vovó, do jardim de inverno e nossos grossos pingos de chuva batendo sem dó nas janelas de vidro. Uma de minhas coleções prediletas! Uma senhora orquestra! O som dos pingos e os zunidos da boca dela rezando o terço das seis. Colecionei nota por nota. Tom por tom. Cada um capaz de reacender minha infância como se risca um fósforo.

O tempo passando é uma espécie de coleção. Entristeço quando vejo que colecionei muito tempo perdido. Páginas e páginas que nem pra reciclar dá. E o contrário dá uma angústia danada. Muito tempo vivido, coisas boas demais, mas que passaram rápido como ventania. Páginas quase arrancadas pelo vendaval.
Antes que me arranquem as páginas que estão por vir, preenchidas com dores ou amores, calores ou tremores, quero estar certa de que irei continuar.
Sem coleções sou incapaz de respirar.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guarda-o-quê

Tenho certeza de uma coisa. Não sou só eu que não gosto dele.
Você também não gosta. Sua irmã não gosta seu irmão também não. Seus vizinhos, seus amigos, seus colegas. Até seu pai e sua mãe não gostam. E não é de agora. Na época da sua avó já era assim. Ela também não gostava. Mas por falta de coisa melhor, todo mundo usa.


Basta um pingo pra todo mundo lembrar que ele existe. Basta o segundo pra ficar apavorado se esqueceu em casa ou no carro. Principalmente as mulheres que não gostam dos fios de cabelos eriçados. Mas basta abrir pra também começar a reclamação - que junto das gotas vem o vento e que então as gotas não vêm somente de cima, vêm de lado, e então logo se conclui que a coisa não resolve o problema e pronto.

Sim, o guarda-chuva é a invenção mais paradoxal de todos os tempos. Porque só ele consegue ser ao mesmo tempo a pior das invenções e a que vende como água!

Depois de meses e meses procurando uma brilhante ideia, uma ideia realmente genial para investir neste milênio alguns trocados que consegui poupar no passado, eis que tive esse insight arrebatador. Vejam só.

Hoje em dia não sou comerciante nem nada, mas diante das mudanças climáticas em que as grandes previsões globais não são nada mais nada menos que chuvas torrenciais e temperaturas de não se conseguir andar nem debaixo da sombra, não me resta a menor dúvida de que num futuro próximo venderei
um só artigo: guarda-chuvas.
Obviamente, servirá tanto para os dias escaldantes, de muito sol, quanto para os dias de águas abundantes. Só me resta contar com os avançados recursos tecnológicos a favor de um produto realmente eficaz. Um produto que definitamente cumpra cem por cento seus objetivos de não molhar nem queimar partes do corpo. Para seres tão superiores capazes de inventar chips adaptáveis em humanos, não me parece nenhuma missão impossível.

Mas o que eu tenho mesmo são sérias dúvidas quanto ao nome.
Como o objeto revolucionário em questão será utilizado tanto como sombrinha quanto como guarda-chuva, acho que teria que ter um terceiro nome. Deixe-me ver....ah... já sei, talvez... guarda-tempo!

Sim, guarda-tempo talvez seja um ótimo nome, até porque tempo, além de estado climático, também está sendo considerado sinônimo de “artigo raro” inclusive no Aurélio!
Portanto, resolvido: guarda-tempo. Um nome cheio de significados e glamour!
Um nome onipotente e onipresente. Um nome cujo conceito transmite altíssimo luxo e simpatia. Utilíssissimo para a sociedade! Artigo de primeira necessidade! Altamente acessível e democrático! Ecológico e auto-sustentável...
...Só um pequeno parenteses ...como estamos em ano de eleições, alguém aí se habilita a algum patrocíniozinho?... ainda temos um espaçozinho no cabo...nada tão caro assim, preço de dois guarda-chuvinhas daqueles de camelô. E aí, negócio da China, né, não?!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ponto Cruz

Quando era pequena eu sonhava em ser professora. Montei duas cadeiras em casa, no salão dos fundos. Comprei uma cartilha para marcar presença das duas alunas, minha avó e a moça que trabalhava como doméstica em casa. Também marcava pontos positivos e negativos na cartilha. Principalmente os últimos. Adorava!
Comprei uma régua, das grandes. Tinha cinqüenta centímetros. Não, não era para dar aulas de desenho. Era para ameaçar minhas alunas caso elas não se comportassem. Copiava mais ou menos o que vivia em classe aos sete anos de idade.

A vida me levou. Ou eu levei a vida, não sei. Só sei que me formei em comunicação, não em pedagogia. Mas de uma forma ou de outra acabei me tornando professora... quando me tornei mãe. E, ao contrário de antigamente, hoje em dia eu vejo claramente que há opções de como ser mãe. A gente pode escolher como quer exercer essa, digamos, função.

Vou explicar melhor. Percebo que nós mulheres podemos gerar um filho, mas podemos não exercer a função de mãe como profissão. Podemos delegar isso a alguém, se preferirmos. Não estou aqui nem questionando se isso é certo ou errado, só estou dizendo que é possível.

A outra possibilidade é gerarmos um filho e assumirmos, entre outras, a profissão de professora, ou seja, a função de educar essa criança para a vida. A tarefa não é fácil. É árdua. Porque a mãe que opta por educar não delega, por exemplo, esse papel para os educadores da escola. Ela deseja somar e não subtrair suas responsabilidades. Essa mãe também dificilmente um dia irá à escola de seu filho desautorizar um professor na frente do filho ou dos demais alunos. Muito menos ditar regras para a direção da escola devido às cifras que deposita nas contas da mesma.

Uma mãe-professora admira, respeita e reconhece o trabalho artesanal de um professor.

Sabe que um ponto-cruz frouxo é apenas um, mas acaba aparecendo mais pra frente em toda a trama. E qual mãe não quer tecer o melhor caminho para o filho? Talvez até as que só mais tarde se deem conta de que ter sido professora poderia não ser algo tão ruim assim.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Bodas

Fazia trinta anos que não tínhamos uma noite como aquela.
Jantar a luz de velas, flores à mesa, champanhe francês com direito a brinde, cardápio vasto, pratos dos deuses, sobremesas de lamber os beiços (pena que fazer isso num bistrô seria uma heresia, mesmo escondidos atrás dos guardanapos).
A noite foi perfeita. Quase. Se não fosse uma dor fininha e insistente no estômago.

Pensei – logo passa, mas não passou. Deve ter sido o caviar. Aliás, só pode ter sido, todo o resto foi bom demais. Eu é que não estava mais acostumada a essas extravagâncias. Amanhã estarei novinha em folha.

Acordei com dor. Quer dizer, a dor me acordou. Às sete da manhã. E me acompanhou o resto do dia, da noite, da madrugada, até o dia seguinte.
Mal dormi. Pela dor de estômago e pela dor de dó de mim. Afinal esse mal-estar súbito e crônico estava estragando a celebração dos meus trinta anos de casamento que poderia

muito bem ter ficado registrado como “o dia” de nossas vidas. O bom é que entre reviradas nos lençóis tomei uma atitude. Mesmo sendo domingo, levantaria e iria ao médico.
E foi o que fiz.

O plantonista pediu um raio x que não acusou nada.
E assim foram os outros exames com especialistas por onde passei: endoscopia, tomografia, ressonância. E nada. Nenhum problema em nenhuma região do aparelho digestivo.

Só que a dor piorava.

Síndrome dos trinta.
Alguém não sei onde disse esse absurdo. O pior é que eu ouvi.
Pior é que ouvi mesmo!

Parece que nesse instante a dor deu uma trégua.
Mas foi só um segundo. Logo em seguida voltou.
Que ridículo!, pensei.

Pensei alto demais, porque a amiga da minha amiga lá do outro lado da mesa que comentou esse absurdo durante o café ouviu e engoliu seco.
Bem feito, quem mandou abrir o bico pra falar uma bobageira dessas!

Fui embora e a bobagem me acompanhou até em casa, até o chuveiro, até a hora de passar

o fio dental. Síndrome dos trinta! Será que esse troço existe?
A cartomante disse que sim. O astrólogo disse que não. A borra de café disse talvez.
E um bom psicólogo, o que diria, indagou minha irmã?
E eu lá estou com problemas psicológicos?
A minha dor é no estôoomago, queridinha.

Será que você não percebe a enorme distância que uma coisa tem da outra, doutora sabe tudo?

Assim que ela disse tchau eu liguei para o primeiro psicólogo da lista do convênio.

Seja lá o que Deus quiser.
Seja lá qual for o nome do sintoma, da doença ou da síndrome - se é que existe alguma, eu

quero me livrar logo dessa dor custe o que custar.

Com muito custo disse Prazer ao me apresentar.
Apesar dele insistir para eu deitar, sentei no divã bem na beiradinha e me pus a chorar de dor.
Passei quase toda sessão falando da minha dor no estômago.
O cara ficou quieto.
Faltava pouco pra terminar ele me perguntou uma coisa tão esquisita, mas tão esquisita

que o único alívio que eu senti foi não estar gastando nem um centavo do meu bolso naquela consulta, já que o convênio é que tava pagando.

Há quanto tempo a senhora e seu marido moram nesse apartamento?
Desde que casamos. Há exatos trinta anos.
Então a senhora pode me dizer qual é a cor do teto do seu quarto?
Senti uma pontada aguda no fundo do estômago. Rapidamente olhei para a porta pra ver se
a fechadura estava trancada, tamanho o meu medo.
Depois de uma pergunta sem pé nem cabeça como aquela esperava por qualquer atitude agressiva e descabida. Coloquei o pé direito à frente, bem de leve, pra ele não perceber.
Sei lá que cor... e que isso tem a ver com a minha dor?
Vocês não vivem juntos há trinta anos debaixo do mesmo teto?!
Deus do Céu! Mais uma pontada... fiz de tudo pra disfarçar. Não podia me mostrar fragilizada diante daquele doido de pedra.
As paredes, disse ele.
O que tem as paredes?, perguntei.
Que estado se encontram?
Olha, doutor, não me leve a mal, mas...
Conservadas ou caindo aos pedaços?
Segurei o máximo que pude, mas minhas mãos tremiam e escorriam de suor.
Doutor...é que não sou muito observadora nem boa fisionomista...e além do mais, nossa hora já não está terminando...

A intimidade de um casal não acontece entre quatro paredes?!

Ao ouvir mais essa do maníaco disparei como uma rajada de metralhadora, derrubando cadeira, mesinha e tudo que estava pela frente. Da mesma maneira entrei no meu quarto, como um furacão avassalador.
Me joguei no chão e olhei pra cima. O ventilador de teto atrapalhava a visão.
Enlouquecida peguei o criado-mudo e pus em cima da cama.
Não sei como me equilibrei, mas consegui arrancar o troço todo de uma só vez.
Pulei do criado e me estirei novamente no chão.
Havia rachaduras. Várias. Diversas, aliás.
Nos cantos, não faltavam teias de aranha. Muitas.
As paredes. Agora eram elas.
Me ergui em posição de sentinela para examinar uma por uma.

Os quadros. Eram eles os obstáculos. Foram todos ao chão. Com pregos e tudo.
Pronto: paredes nuas e cruas.
Diagnóstico: Crostas de pó. Sinais de infiltração. Mofos. Até buracos.

Minhas pernas foram amolecendo, os joelhos dobrando, e a dor, a terrível e inexplicável dor, foi do estômago ao coração em frações de segundos, arremessando lembranças e sentimentos massacrados pelo tempo. Trinta anos entre quatro paredes vivendo juntos debaixo do mesmo teto e deixando tanta coisa apodrecer!

Passada a avalanche de lágrimas, a dor se foi. Leve e ligeira como uma pluma. E eu convidei meu marido para celebrarmos de novo nossas bodas.
Não num bistrô. Mas numa casa de tintas.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Apenas noite

Se apenas houvesse noite, não haveria medo.
Talvez eu fizesse tudo o que me desse na telha.
Talvez a coragem vencesse.
À noite, ao contrário, tudo é claro. É possível. Tudo é fácil e mágico.
À noite, acordada, eu sonho. E me deixo levar pelos meus desejos.
À noite eu me encorajo.
Fecho os olhos apenas para enfeitar o cenário das minhas conquistas. Pois é claro!, já conto como certas.
Gosto do gosto da noite, desse seu feitiço, sua doce zonzeira, seu silêncio surdo que liberta minhas vozes caladas.
Quantas noites já lutei pra não dormir só pra poder sonhar?
Quantas pílulas já não tomei pra ficar acordada?
Mas o sono, esse destruidor da misericordiosa insônia, vem e rouba a dona da minha onipotência e se faz senhor dos meus pesadelos.
Porém, me mantenho a quilômetros do alvorecer.

Me recuso por um pé sequer madrugada adentro.
Tenho náuseas quando a lua se põe.
Vou morrendo ao nascer do sol....ao começar de novo.
Começar o quê?
O real?
Apagar o brilho?
Aprisionar o sonho?
Desligar o possível?
Ativar os medos?
Armar os entraves?
Dizer adeus aos delírios ilimitáveis da noite?
Não. Sou apenas de uma dona só. Ela, a escuridão.
Somente nela sou capaz de me ver.
Quanto mais negra, mais reflito.
Eu e ela, numa eterna cumplicidade.
Intimidade invejável.
A noite, meu fiel retrato.
Minha alma revelação.