quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Ócios do ofício

Hoje o autor está sem vontade de escrever. Finalmente comprou seu sonhado colchão de molas e está louco pra ficar só e não ouvir uma palavra sequer. O dia está chuvoso, perfeito para ficar de pijama, tomar um café em cima do colchão novo, ficar debaixo dos lençóis e curtir o ócio. O dia seria perfeito, e pra sua garantia pôs tudo no off: telefone, celular, TV, rádio, campainha, empregada, passarinhos. Pegou uma revista qualquer e começou a folhear a esmo. Lembrou do playlist que havia feito para o dia que tivesse tempo de ouvir música clássica, sua preferida. Abriu a gaveta e pegou o ipod. Pôs os fones e delirou com aquele idílio narcisista. De repente observa uma luz acendendo em seu laptop.
Ato falho, foi o único eletrônico que ficou on. Como podia ter deixado on, indagou com certa indignação. Não quis dar bola, mas a luz ia e vinha numa constante. Lembrou de um amigo que estava para chegar no Brasil, olhou no relógio de pulso e viu que ainda não era o dia que ele chegaria. Seria algum email urgente, então?, em pleno domingo?!
Com os pés arrastou o laptop da beira da cama até a cabeceira, onde estava divinamente acomodado num travesseiro gordo. Quem será?
Consultou seus emails. Nada de novo. Nada do que já não tinha visto. Talvez alguém ligando pelo skype. Sim, sua filha mais velha estava viajando a trabalho. Ninguém no skype.
Sem querer esbarrou no ícone do Word. Segundo ato falho. Está viciado em abrir o Word. Ouviu uma voz diferente. Tornou a olhar para a porta, certificando-se que todos haviam saído de casa. Sem que ele ordenasse, seus dedos começaram a teclar, teclar, cada vez mais rápido. Não conseguia conter o impulso de suas mãos. Um personagem desconhecido queria se comunicar. Palavras e mais palavras foram alucinadamente descarregadas. Aos montes. Quase sem vírgulas para respirar. Ele mal entende o que digita. É um diálogo entre dois desconhecidos. Um homem e uma mulher. Ele não sabe se são casados ou apenas bons amigos. Nem bons amigos ele sabe se são. Intui que o suposto casal ou os supostos bons amigos têm muito a dizer um para o outro. Aos poucos ele vai lendo o que escreve e percebe que há tempos não se viam. Estavam saudosos um do outro, apesar dos rancores. O autor não concorda quando o homem a chama de incompreensível. Pelo pouco que já conhece dos dois e, principalmente da mulher, nota que ela pode ser tudo na vida, menos incompreensível. Uma mulher incompreensível não teria feito uma carta num papel de cartas tão bonito, escolhido a dedo, que não foi comprado numa papelaria qualquer. Uma mulher incompreensível teria comprado um envelope-padrão, tipo correio, lugar-comum. O homem sim estava reticente demais.
O autor está curioso para saber o que mais havia acontecido entre eles. Se afinal eram mesmo um casal que havia se separado por algum tempo. Se estavam divorciados. Mas certas intimidades eles falavam baixinho demais, quase sussurrando, praticamente impossível de ouvir. O autor não se conforma com isso, afinal ele é ou não é o autor dessa história, porra? Por ele, ainda estava lá jogado na cama agarrado em seu ócio. Tinha tirado o dia pra ler e não pra escrever. Mas estava ali, numa situação inenarrável. Ninguém acreditaria se ele contasse.
Pensou em largar o laptop, já que não conseguia nem mesmo ouvir os sussurros do casal.
Quis continuar o que tinha parado: estrear o novo colchão de molas. Estava gostando de sua maciez. Ele sempre quis um colchão daquele, de molas, muitas molas. Quando viaja para dar palestras sobre seus livros, fica em hotéis com colchão de molas, acha que relaxa mais, alivia as dores crônicas da coluna. Por que não em casa?
O laptop não queria fechar. De jeito nenhum. Ele forçou tirando braço de ferro com o troço, mas tinha emperrado. Pensou duas vezes antes de forçar novamente, afinal um novo laptop poderia custar mais do que o novo colchão de molas. Então tirou o laptop do colo e colocou sobre o colchão. O casal se sentiu mais à vontade, gostaram do conforto do colchão.
Mais relaxados, os dois começaram a dar mais detalhes. Agora falavam alto sobre mágoas, traições. Não. Não pense que um traiu o outro com outra pessoa. Não foi isso. Eram traições piores. Segredos revelados em público. Não há nada que fira mais uma pessoa do que seus segredos expostos publicamente. Ainda mais por uma pessoa tão íntima.
A carta dela pedia desculpas, embora o autor não concordasse que fosse o momento adequado de entregar a ele. Por outro lado isso podia abreviar a história e o autor poderia voltar ao seu descanso dominical. Fazia tempo que ele não ficava estirado, tirando um bom cochilo. Fazia tempo que não tinha um tempo pra não escrever.
Sinceramente não esperava por visitas. Não naquele dia. Muito menos daquele tipo... casais em crise. Não estava com paciência para textos que discutem a relação. Se ainda fossem engraçados, podia até ser. Poderia dar boas risadas, se divertir um pouco enquanto escrevia. Mas um dramalhão daqueles!
Com muito custo tentou novamente eeeeee pumba - shutdown no laptop.
De nada adiantou. As vozes dos dois permaneciam em sua mente. Cada sílaba, cada exclamação. Quem escreve, nunca está só.

3 comentários:

Anônimo disse...

amei!!!!! genial!!! os meus tão chamando mas ando meio surda! rssss
beijão Tchom

EZInnovTools disse...

agora ví uma escritora na tela do meu computador, e das grandes...

Épi.

Unknown disse...

Puxa Paulinha, quanto tempo! Não sabia que vc tinha um blog com seus textos, muito legal!

Queria muito conversar com vc, por em dia as fofocas, saber da vida.

Aí vai meu email:alceume@gmail.com
Vou esperar um email seu, valeu!